Proseando : A SENHORA DOS GATOS

A Senhora dos Gatosbeirava os oitenta anos. Tinha cabeleira branca desgrenhada, roupa sempre amarrotada e arrastava uma das pernas. Herdeira de pequena fortuna não se casara, pois o amor de sua juventudeviajara à Europa a negócios, prometendodesposá-la assim que retornasse.Para suportar a espera interminável vivia com 128 felinos. 128, não! 130 ou 140. Não sei. Ninguém sabe. Somente ela, talvez, soubesse o número exato.
Morava numa casa antiquíssima, de terreno largo.Quem passava pela rua via gatos no telhado, na janela, à porta, entre os vasos de avencas e rendas portuguesas. Gatos espreguiçando nas gramíneas, correndo atrás de passarinhos. Gatos vira-latas, siameses, persas, angorás, de todas as cores, de todo tipo de pelagem. Depois de décadas de convívio, aprendeu a língua dos gatos e a instituiu como idioma oficial naquele lar.
Saía esporadicamente, sempre acompanhada pela procissão de gatos.Devido ao aspecto medonho, algumas pessoasalcunharam-na de bruxa e, por isso, fugiam dela. Outras se limitavam a gritar palavrões quando se deparavam com a calçada congestionada pela gataria. Poucos eram aqueles que a admiravam pelo amor aos gatos. Entretanto, quando a excentricidade da mulher se internacionalizou e a cidade ficou famosa, os munícipesse encheram de orgulho para falar da Senhora dos Gatos aos turistas e à imprensa.
De um tempo pra cá, ela passou a cuidar mais de si. Aloirou os cabelos e abandonou os amarrotados.Semanas atrás,se dirigiu à única capela da cidade para tratar de assunto importante: pedir ao padre que a casasse com um…
– Gato?
– Sim, padre. Um gato lindo que apareceu lá em casa.
“Coitadinha. Perdeu o juízo.” – pensou o padre que nunca negou um pedido na vida.
Depois disso, a notícia se espalhou como raio. No dia do enlace, na hora marcada,entrouna capelinha um homem em passos miúdos,segurando almofada dourada. Sobre a almofada, belíssimo gato BritishiShorthairenfeitado com laçono pescoço. Tão logo o homem se estabeleceu com o animal no altar, a Senhora dos Gatos entrou ao som da marcha nupcial tocada na viola caipira pelo sacristão. Ao fim da melodia, o padre iniciou a cerimônia falando sobre o amor que São Francisco de Assis dedicava aos animais. Disse que o mesmo amor emanava da Senhora dos Gatos.
As paredes dacapelinha,abarrotada de gente e gatos,tremiam.A maioria se acotovelava a fim de buscar melhor visão do altar. Diante da perturbação da ordem, o padre encurtou a cerimônia: “Eu vos declaro: marido e mulher”.
O dono da quitanda, escarnecedor de nascença, gritou:
– Beija! Beija! Beija! Agora o gato já é seu marido!
A Senhora dos Gatos se apossou da almofada e pousou breve beijo nacabeça do gato. Em seguida entregou a almofada com o BritishiShorthairao padre e…mergulhouum beijo pornográfico no homem que trouxera o gato.
Finalmente, o amor da juventude cumprira a promessa.