Proseando : CHOVIA… E CONTINUA CHOVENDO

Chovia. Estava acamado. No criado mudo havia frascos de remédio, pomadas e outros paliativos para burlar as dores. Raramente algum dos filhos aparecia, e quando aparecia estava disfarçado de preocupações para se apropriar de dinheiro ou outro benefício. Depois ia embora como se ele fosse um pedaço insignificante de nada.

Chovia. O frio do leito era suportável. O do abandono, não. A fralda geriátrica estava transbordando. Se conseguisse se locomover se banharia e sairia para conversar com flores.

Chovia. A cuidadora estava, costumeiramente, atrasada. Podia ligar e pedir ajuda a algum dos filhos. Podia. Mas eles não atenderiam. Diriam que estavam em reunião, ou dariam outra desculpa.

Chovia. Quando as lágrimas emergiam, mergulhava no passado para decifrar o presente. O amor dedicado aos filhos foi excessivo, sem regramentos, sem punições. Mostrou a eles o caminho do bem, mas por ter atendido a todos os caprichos deles, preferiram o caminho da soberba, do luxo, da materialidade.

Chovia. Durante o casamento conspiraram contra ele. Filhos e esposa atribuíram-lhe insanidade mental. Foram tão contundentes que ele acreditou até procurar especialista que diagnosticou sua saúde plena. Sentiu-se traído, destruído, humilhado.

Chovia. Os filhos casaram e, mesmo assim, continuaram exigindo mordomias. Não sabia usar freios.

Chovia. Pôs fim ao casamento e se libertou da tortura. Tempos depois encontrou uma amiga da infância e o amor renasceu.

Chovia. Os filhos não aprovaram o relacionamento, alegando que a mulher não tinha onde cair morta. Era paupérrima. Queriam que o pai se compromissasse com alguma mulher de muitas propriedades, de polpudas aplicações financeiras, de grande destaque na vida social.

Chovia. Os filhos se intrometeram na vida afetiva do pai até que ele rompesse o relacionamento diversas vezes. Foram tantas idas e vindas que depois do último rompimento não houve tempo para a reconciliação. A mulher não resistiu a uma enfermidade.

Chovia. Com dificuldade pegou a foto escondida entre as páginas do livro de cabeceira. Era o registro de um passeio dele com o amor da sua vida. “Por que não a valorizei? Por que dei ouvidos às vozes contrárias ao meu coração? Por que abandonei tantas vezes aquela que se dedicou a mim sem exigir nada em troca? Por quê?”

Chovia. Uma brisa suave balançou a cortina. Sentiu perfume de margaridas. Ao lado da cama surgiu uma mulher vestida de luz, sorrindo. Era ela. Pegou-lhe nas mãos e disse: “Chega de sofrimento Vamos embora. Vamos ser felizes por toda a eternidade”.

Chovia e continua chovendo.