Proseando : FEIO PRA CACHORRO

Usava óculos fundos de garrafa; sem eles, não enxergava um palmo diante do nariz. Mas estava confiante, pois, depois de meses de espera, às 16 horas, do outro lado da cidade, Dr. K. Olhão iria atendê-la. Escolhera-o por dois motivos: era o melhor oftalmologista da região e, diziam, um colírio para os olhos.
Naquele dia, almoçou pouco. Estava ansiosa. Banhou-se demoradamente, perfumou-se, caprichou na maquiagem. Finalmente iria usar o vestido que comprara para a ocasião. Mirou-se no espelho. Achou-o comprido demais. Apressou-se nos alinhavos.
O marido, esparramado no sofá, babava e roncava suinamente. Só acordou quando foi cutucado.
– Estou indo. Não se esqueça de que o Sansão tem tosa hoje.
Sansão era o pacotinho de algodão, o poodle toy, o xodozinho dela. Assim que ela saiu, o marido consultou o relógio. Em pouco mais de meia hora o jogo iria começar. Abriu garrafa de cerveja e encheu o copo. Cuidaria do cão no intervalo. Bebeu, bebeu e bebeu. Embebedou-se de cervejas e destilados. Durante o jogo xingava o técnico, os jogadores, o juiz e o VAR. Os protestos não impediram a derrota.
Ao fim do jogo, Sansão começou a latir. Estava com fome. De saco cheio, engatilhou a perna para o chute. O celular tocou.
– Amor, o ônibus quebrou. Vou demorar. Levou o Sansão à tosa?
– Ãh? Quê? Ic! Sansão? Tosa? Ic! Ah, sim.Ic! Tá tosado.
– Encheu a cara outra vez?
Desligou o telefone para não ouvir sermão. Trançando pernas, procurou tesoura. Encontrou-a e começou a tiquetaquear o poodle.Tic-tic-tic-tic! Cortou demais de um lado. Tic-tic-tic-tic. Tentou consertar e piorou. Ao perceber o estrago, pensou em recolocar os pelos com cola ou fita adesiva. Péssima ideia.
– Já sei! O angorá do vizinho.
Estava à porta quando ouviu a chave girar. Com abraço efusivo espremeu e chacoalhou a esposa. Os óculos mergulharam no assoalho.
– Sai de perto de mim, pinguço. Cadê o Sansão?
Ele chutou os óculos para debaixo do sofá.
– Na cozinha. Vou buscar.
– Cadê meus óculos. Não enxergo nada sem eles.
O marido voltou com o angorá nos braços.
– Sinta como o pelo dele ficou mais macio.
Quando ela tocou nogato ele ronronou e miou.
– Que brincadeira é essa? Cadê meus óculos?
Para evitar uma tragédia, entregou-lhe o acessório corretivo. Ao ver o poodle desfigurado, ela disse, ameaçadoramente:
– Vá dormir. Amanhã conversaremos.
No dia seguinte, à mesa do café, encontrou o bilhete: “Desculpe, amor. O Sansão até que ficou bonitinho. Fui trabalhar. Me perdoa?”
Aliviado, finalizou o desjejum e foi avaliar a tosa. Quando viu o poodle, disse: “Você tá feio pra cachorro!”, e caiu na gargalhada. Depois, entrou no banheiro para escovar os dentes e se pentear. Ao suspender o pente, gritou:
– Cadê meus cabelos!