JOÃO BUIU

Conheci João Buiu numa noite triste de inverno. Velávamos o pai de um grande amigo e, João, com sua capa de cavaleiro, seu cabelo comprido encaracolado e sua longa barba, sentado num canto da sala, fazia companhia para nós. Às vezes, ele cochilava; outras, acordava e pedia-me chá e bolacha. O dia amanheceu, outros amigos e familiares chegaram, e João foi-se embora com o enorme saco de coisas que ele acomodara ao seu lado.
Depois desse dia, todas as vezes em que porventura nos encontrássemos pelas ruas de Pindamonhangaba, ele me cumprimentava como se fôssemos amigos de longa data. E, de fato, somos!
Um desses dias, com ele aprendi uma grande lição. Era bem de manhãzinha, João estava catando lixo na Praça da Bíblia, e, ao caminhar em sua direção, fui recolhendo as latinhas para ajudá-lo. Quando lhe entreguei as que eu havia catado, ele agradeceu-me e se recusou a aceitá-las. Olhou-me bem no fundo dos olhos e disse-me: “Eu não pego latinhas! Eu deixo para quem precisa de dinheiro…” E foi saindo da minha vista com seu fardo de garrafas de vidro, de papel e de papelão…
Meio indignada, deixei as latinhas num dos bancos para benefício de alguém que pudesse encontrá-las. Voltei para casa refletindo sobre o valor da vida e do trabalho e, também, sobre do que precisamos realmente para viver uma vida digna, em harmonia com a natureza, sem explorarmos seus recursos até a exaustão, sem escravizarmos animais e seres humanos, ou sem submeter estes a trabalhos vis.
Desde esse dia, tenho por João Buiu profundo respeito e admiração. A sua lucidez iluminou um canto sombrio da minha vida, o egoísmo, esse apego excessivo a si mesmo sem se importar com as necessidades alheias. Desapegar-se do que se acumulou ao longo da vida e que, por ora, não mais nos serve, não é tarefa fácil. É missão para seres altruístas, como ele, que saem a perambular pelas ruas da cidade, dia e noite, catando o que nós descartamos à espera de alguém que possa lhes dar nova serventia.
Uma outra vez, eu o encontrei sentado à porta da farmácia São Domingos tocando “bateria” em meia dúzia de latas velhas. Com sua furiosa baqueta, João estava deixando os funcionários da farmácia enlouquecidos. Ao chegar ao caixa, ouvi a moça solicitar a viatura da polícia para retirá-lo de lá. Ela disse-me que fazia horas que João estava tocando sem parar e que não acatava os pedidos para ir com “sua bateria”para outro lugar.
Desci os degraus e sentei-me ao seu lado. Fiquei a olhar aqueles olhos negros escondidos no rosto de barba comprida e de cabelos encaracolados… O que será que ele pensava? Em que mundo tão distante João Buiu se encontrava? Com os olhos da alma, eu o avistei numa praça pública, repleta de gente, aplaudindo o músico famoso que certamente ele imaginava ser naquele instante… Foi quando tive a ideia de elogiar sua música e dizer-lhe que na Praça da Bíblia tinha um palco e muita gente esperando para ouvi-lo e aplaudi-lo.
João Buiu simplesmente olhou no fundo dos meus olhos, levantou-se num repente e disse-me: “Você me ajuda a levar minha bateria para lá?”. Mais do que depressa, peguei suas latas do chão e, juntos, fomos proseando rua afora. Ao chegarmos à pracinha, o palco que serviria de cenário para os músicos que iriam se apresentar à noite, estava vazio como se esperasse João. Ele arrumou suas latas, pegou sua baqueta e, sem dó nem piedade, tocou e cantou para quem quisesse ouvi-lo… Todos nós que estávamos na pracinha o aplaudíamos. Ele ficou deveras feliz!
Naquele dia, sua música afinou meu espírito e, com ele, aprendi uma segunda lição: amar as pessoas na potência máxima, respeitando suas limitações e suas maravilhas… Bem que eu vi o carro da polícia passar em disparada em frente ao cemitério… Bem que eu ouvi a voz da minha alma e aquela sua inesquecível canção…