O RONCO

Casados há quase quarenta anos, conviviam em harmonia porque sabiam debelar os conflitos com diálogos francos. Quando algo não satisfazia uma das partes, bastava requerer dois dedos de prosa à mesa do chá. Após muitas noites mal dormidas, a esposa não se conteve:
– Não preguei os olhos. Você precisa procurar um médico.
– Médico? Por quê? Sou um homem saudável.
– Saudável? Você sofre de incontinência urinária, diabetes, pressão alta… Isso pra não falar da impotência se…
– Eu a proibido de falar sobre isso! Nosso assunto é outro. Me diz: que culpa eu tenho se você não consegue dormir?
– Que culpa?! Que culpa?! Você ronca como porco!
Ele interrompeu o movimento para levar a xícara à boca.
– Eu não ronco! Jamais ronquei. E você sabe disso.
– Não roncava. De uns tempos pra cá, começou. Eu não disse nada porque era um ronco brando. Mas hoje, você caprichou. Roncou tão forte, tão alto, que deve ter acordado a vizinhança toda. Prestenção: se não parar de roncar, irei embora.
Chegaram a um acordo: toda vez que roncasse, ela o cutucaria.
Naquela mesma noite, trocaram beijos murchos e se despediram do amigo fiel.
– Boa noite, Brutus!
Brutus – o cão boxer que tratavam como se fosse filho – dormia todas as noites ao lado da cama deles.
Assim que o homem se deitou e cerrou os olhos, os estrondosos roncos foram reinaugurados, enfurecendo a mulher que, imediatamente, investiu nos cutucões. Mas, como a ação era ineficaz, decidiu por algo contundente: meter um tapa na cara do marido. O homem pulou da cama, pisou no cão e só não foi mordido porque a obesidade deixara o animal preguiçoso.
– Tá ficando louca, mulher?
– Louca, não. Tô ficando surda! Aqui não fico mais.
Ela foi dormir num hotel. Ele ingeriu calmante para dormir. Dias depois ela pediu divórcio. Ele sofreu muito, e o sofrimento aumentou quando o cão morreu. Passava das 23 horas quando ligou para comunicá-la:
– Meu amor, o Brutus… O Brutus morreu!
Em poucos minutos ela apareceu para acolhê-lo num abraço solidário, carinhoso, demorado.
– Você está linda!
– Obrigada. E você um pouco desleixado. Não vou me demorar.
– É perigoso ir embora. A criminalidade aumentou. Durma comigo.
– Hum… Só se você me prometer que não irá roncar.
Ele sorriu. Não podia prometer. Mesmo assim, ela aceitou. Queria matar a saudade.
A noite foi tranquila. Ele não roncou.
No dia seguinte, o veterinário chegou para diagnosticar a causa morte e providenciar o funeral.
– O excesso de peso comprimiu os órgãos. A gordura na garganta comprometeu a passagem de ar pela traqueia. Morreu asfixiado.
Ao saber que o cão dormia no quarto do casal, o veterinário perguntou:
– Devido ao excesso de gordura na garganta, não tenho dúvida de que Brutus roncava muito. Vocês conseguiam dormir?