Proseando : O SABIÁ SABIA

O sabiá morreu. Ele morou quase a vida toda nos ombros do meu avô. Há vinte e tantos anos se conheceram em um bosque, onde meu avô gostava de caminhar descalço, de abraçar árvores, conversar com flores e ouvir canto de passarinhos.

A amizade nasceu quando meu avô impediu o menino malvado de apedrejar a avezinha.
— Não faça isso, senão tomo o seu estilingue.

O menino recuou pronunciando inconvincente pedido de desculpa e, depois de se distanciar, endereçou britas à cabeça do pai de minha mãe. Uma delas acertou-lhe o supercílio direito. A cicatriz nunca desapareceu.

Assim que o menino foi embora, o sabiá desapareceu, mas não tardou a voltar. Sobrevoou meu avô e fez pouso perfeito nos ombros dele. Trazia no bico um pedaço de pano: aproximadamente dez centímetros quadrados de linho branco. Meu avô nunca soube como a avezinha conseguira o tecido para que ele estancasse o sangramento.
Desde aquele dia, se tornaram amigos inseparáveis. Quem não gostou muito foi minha avó, que morria de ciúmes.

— Depois que esse sabiazinho sem graça entrou na sua vida você nem lembra que eu existo.
Meu avô a apaziguava com abraços, beijos e juras de amor eterno. Mas a harmonia só foi reconquistada quando ele ensinou o passarinho a passear também nos ombros dela. Com o tempo, passaram a tratar o sabiá por “meu filhinho”.

Meu avô, um homem culto, altruísta, generoso, de caráter íntegro, não resistiu à decepção. Depois que divulgaram o resultado, começou a passar mal. Eu estava com ele. Chamei a ambulância que, cruelmente, não chegou a tempo. Em meus braços, ele apertava as mãos contra o peito, enquanto balbuciava as últimas palavras.
— Meu Brasil verde e amarelo, resista!

O sabiá fez voos aflitos, desordenados. Não tenho dúvida de que ele sabia o que estava acontecendo. Sabia que estava perdendo o amigo.

No velório, o sabiá pousou no caixão, junto à cabeça de meu avô, e se deitou. Ficou ali quietinho. Foi minha sobrinha quem percebeu que as pálpebras do passarinho se fecharam.
— Que belezinha! Está dormindo.

No número Y da quadra X, na mansão dos mortos, estão sepultados meu avô e o sabiá.
Eu, discípulo dele, continuarei a defender os valores morais e a bandeira que ele tanto amava.