Proseando : O ÚLTIMO PEIXE

Por culpa da pandemia, há meses não visitava o avô. Porém, finalmente, havia chegado o dia de matar saudades e mostrar sua evolução no futebol.Ao lado do pai, o menino de ferrugem no rosto e cabelo encaracolado, carregava bola nas mãos.
Diante da casa amarela, o pai o pegou no colo para que tocasse a campainha. Tocou insistentemente,mas, como o avô não aparecia, o pai usou a cópia da chave para abrir a porta. O menino entrou feito furacão, lançou a bola ao ar e, antes que ela caísse, chutou-a. A esferase chocou contra o aquário, derramandoágua no chão. O pai levou as mãos à cabeça, receando estragos; pois, o aquário era relíquia da família, e o peixe, remanescente de espécie rara. Imediatamente a bola foi confiscada.
O aquário estava intacto, mas o peixe… O menino, na inocência de seus quatro anos,perguntou:
– Pai, o peixe tá boiando ou tá dormindo?
Silêncio.
– Pai, peixe morre afogado?
Silêncio.
– Pai, faz respiração boca a boca nele. Pai…
O pai mandou que calasse a boca. Precisava pensar,encontrar maneira de não enfartar o sogroque, recentemente, colocara marca-passo.Decidiu pegaro peixe elevá-lo à cozinha. No caminho, escorregou e bateu a cabeça na mesa, causando-lhe pequeno corte na testa. Sangrou. No impacto, o peixe escapou e foi parar debaixo do armário.
Levantou-se zonzo, recuperou o peixe e o colocou sobre a pia. Com a ponta dos dedos tentou reanimá-lo. Nada. Sem que o filho visse, colou os lábios na boca do peixe e soprou insistentemente. Nada. Desanimado, sentou-se no sofá enquanto o filho mascava chiclete.
– Chiclete!? Por que não pensei nisso antes?
Enfiou os dedos na boca do filho e subtraiu a goma de mascar.
O menino esperneou, chorou, gritou. Ignorando-o, o pai retirou um terço de água do aquárioe, em seguida, enxugouas paredes de vidro. Depois,com fio dental, amarrou o chiclete no corpo do peixe e apertou o chiclete contra a parede de vidro. Esperou a secagem e repôs a água.
Poucodepois, o sogro apareceu com lindo vaso de orquídeas. O neto, ao vê-lo, parou de chorar e correu para abraçá-lo.Ao ver o genro, disse em tom de zombaria:
– Que corte feio é esse na testa? Pelo visto, minha filha melhorou a pontaria.
– Vô, o peixe…
– O peixe? Ah, o peixe foi morar no aquário do céu. Quando acordei de manhãzinha ele já tinha ido se encontrar com a sua vovó.
– O peixe morreu, né, vô?
– Morreu.
– O senhor tá triste? Vai querer outro peixe?
– Triste? Um pouquinho. Outro peixe? Não. Vou substituir o aquário por orquídeas, as flores preferidas da vovó.