Proseando : OLHOS DO CORAÇÃO

O senhor W.W. morava só, na casa sem reboco de portão enferrujado. Para chegar à porta de entrada precisava escalar o entulho que esmagava o vestígio de jardim. De vez em quando, alguma Maria-sem-vergonha se desvencilhava dos escombros e teimava viver brevidade. Ao lado da casa, quaresmeira seca debruçada no telhado se esquecera das primaveras. A última folha amarelava.
O único som que interrompia o silêncio do imóvel era o giro da chave. As janelas estavam proibidas de permitir que qualquer fio de luz externa bisbilhotasse. As sombras somente eram amainadas à noite, quando tocos de velas desenhavam penumbras.
Todas as manhãs W.W. saía emoldurado pelo sobrecenho nubloso que tematizava os olhos, e retornava ao agonizar da tarde. Invariavelmente, caminhava cuspindo resmungos e chutando vazios.
Versões sobre a origem da sisudez se multiplicavam. Uns diziam que era por ódio da mulher que o traíra. Outros, que viera do tempo em que viveu na prisão. Conjecturas sem fundamentos? Vai saber.
Ele não estava em casa quando o caminhão de mudanças chegou. Meia dúzia de móveis e outras tantas bugigangas foram colocadas na casa do outro lado da calçada. Família pequena: pais e filha. Somente no dia seguinte percebeu a novidade. Desde então, passou a encontrar o pinguinho de gente à janela. Devia ter dez anos, não mais, cabelos dourados, rosto enfeitado por olhos cor do céu e lábios onde moravam sorrisos intermináveis.
Tentou ignorá-la, mas a imagem daquele sorriso indissolúvel se apoderou dos pensamentos dele. Não conseguia mais se concentrar no trabalho. Não conseguia dormir. Não conseguia se alimentar. Não conseguia isso, não conseguia aquilo. Até os resmungos amiudaram.
Depois de noite turbulenta nos braços da insônia, assim que o dia se inaugurousaiu de casa para trabalhar e encontrou a menina debruçada na janela. Passou por ela, deu alguns passos e voltou.
– Oi.
– Oi.
– Posso fazer uma pergunta? Todos os dias eu saio de casa e encontro você com o mesmo sorriso.
– Sim.
– Qual o motivo de tanta felicidade? O que você vê de tão belo nesse mundo cheio de gente ruim?
A menina sorriu e disse:
– Não sei, senhor. Não posso ver. Sou cega. Mas sinto o amor de Deus que a mim se entrega através dos raios de sol, do barulhinho da chuva, dos beijos do vento…