Proseando : TESTAMENTO

Vinte e três horas e quarenta minutos.
Os filhos, atentos à leitura do testamento, solicitavam explicações sobre vocábulos jurídicos. O Dr. Menta, amigo da família há décadas, dissolvia as dúvidas entre um gole e outro do chá de camomila.
— Não querem mesmo? Está uma delícia!
Antes de findar a leitura, revelou:
— A Srª Milly Honária nomeou-me testamenteiro. Destarte, revelo haver uma condicionante para que façam jus à fração de direito.
Pausa para bebericar mais chá. Dessa vez, mais longa.
— Quer matar a gente de suspense, doutor? Fala logo!
— Trata-se de uma pergunta.
— Qual? — Implorou o primogênito.
— Somente quem respondê-la, corretamente, receberá a herança e, também, a parte daqueles que errarem.
— Xi! — afligiu-se o irmão do meio.
— Manda logo essa pergunta! — Esbravejou a caçula.
Dr. Menta deu a cada um, um pedaço de papel e caneta.
— Escrevam a resposta, coloquem o nome de vocês e…
— Chega, doutor. Faça logo a pergunta! — Ordenou o do meio.
— A pergunta não será feita por mim.
— Não?! — Disseram em coro — Por quem, então?
— Pela Srª Milly Honária.
— Mamãe???
— Ela gravou a pergunta no meu celular. Vou por pra vocês ouvir.
“Ataulfo, Herivelto e Alcione, meus amados filhos. Eu os perdoo pelas raríssimas vezes que foram me visitar. Saibam que me contentaria com tão pouco. Com o olhar de vocês no meu. Com a troca de meia dúzia de palavras. Com um sorriso. Um carinho. Sofri muito na tentativa de ser mais importante do que seus malditos celulares. Mas eu os perdoo. Perdoo a ausência de vocês. Hoje, faz três meses que não aparecem, não mandam notícias. Nem sequer uma ligação. Devem estar muito ocupados para a mãe doente. Nada disso mais importa. Creio que o Dr. Menta já distribuiu caneta e papel, onde responderão à pergunta que farei… A pergunta é a seguinte: Em qual local do corpo eu tenho uma cicatriz?”
Dr. Menta desligou o celular e cronometrou cinco minutos para a resposta. Assim que o tempo expirou, recolheu os papeizinhos.
— Alcione: braço. Ataulfo: rosto. Herivelto: pé.
Os irmãos se entreolharam. O primogênito inquiriu:
— E então, doutor. Quem acertou? Quem? Quem?
— Ninguém.
— O senhor não sabe de nada. Só mamãe poderia invalidar nossas respostas. Mas ela não está mais entre nós.
No instante em que os ânimos se exaltavam, a energia elétrica falhou. Eram vinte e quatro horas e alguns segundos. Passos se arrastaram pelo escritório. Uma voz conhecida, falou:
— A cicatriz que tenho foi feita por vocês… E está em meu coração.