Proseando : ELEFANTE ENFERRUJADO SEM TROMBA

Antes de adormecer profundamente, ele o reconheceu. Não tinha dúvida de que era ele. Ninguém no mundo possuía aqueles cabelos ruivos embaraçados, aquela legião de sardas no rosto, aquela voz esganiçada.
Assim que a anestesia produziu efeito, foi mergulhado nas reminiscências escolares, e ouviu:

“Você era um menino comprido, travesso, criador irrefreável de apelidos. Nos primeiros dias de aula todos os colegas da sala foram ‘rebatizados’. Dentre eles, o gordinho, que passou a ser o mais visado.
‘Sai da frente, gente! Aí vem o elefante enferrujado sem tromba!’

O menino, refém da disfunção hormonal, estacava. Em seguida, apressava passos e ia refugiar as lágrimas no banheiro. O caso chegou à direção da escola que, mesmo tomando todas as medidas, não conseguiu resolver o problema.

Certo dia, após deixar a escola, o menino obeso foi seguido por vários alunos que, liderados por você, repetiam em coro:
‘Elefante enferrujado sem tromba está fazendo o chão tremer!’
‘Me deixem em paz, por favor!’ — Implorava com as mãos tapando os ouvidos.

Numa das tentativas de correr, ele tropeçou e caiu de cara no chão. Levantou-se sangrando e chorando; e, quando passou pela ponte sobre o rio, aproximou-se de uma das beiradas, fechou os olhos e abriu os braços.
‘Elefante não voa!’ — Você gritou.
Sem suportar a zombaria, ele pulou.

Ele não sabe nadar!’ — Avisou a menina que passava pedalando.
Presumindo a tragédia, vocês fugiram. No dia seguinte, souberam que a menina havia conseguido o socorro. Depois daquele dia, o menino não quis mais ir à escola. A professora, sabendo da resistência ao retorno, em seu período vago passou a frequentar a casa do menino para dar-lhe aulas…”
— Ele está acordando — Informou a enfermeira.
O médico-cirurgião sardento, de cabelos embaraçados, estava em pé, sorrindo, ao lado do leito, acompanhado pela mãe do paciente.
— Foi um transplante complicado; mas, graças a Deus, bem sucedido. Seu filho está salvo.
O paciente, movimentando vagarosamente a cabeça para focalizar o doutor, sussurrou:
— Você se parece com o…
— Elefante enferrujado sem tromba? — Riu — Sim, sou eu.