Nossa Terra Nossa Gente : FELÍCIA LEIRNER

Existem pessoas que transcendem a curva da existência e o espaço geográfico em que viveram e ficam, para sempre, eternas em todos os lugares. Francisco de Assis, Fernando Pessoa, Einstein, Freud – entre tantos outros artistas, religiosos, cientistas – alcançaram essa proeza. Aqui, bem perto de nossa terra e de nossa gente, em Campos do Jordão, vive Felícia Leirner, escultora polonesa que nasceu em Varsóvia em 1904 e que migrou para o Brasil em 1927, tendo escolhido a Serra da Mantiqueira para gestar sua obra.
Discípula de Victor Brecheret, Felícia ajudou o renomado artista a esculpir o Monumento às Bandeiras em São Paulo e, desde 1948, utilizou o granito, o cimento armado, o ferro e o bronze para dar vida às suas esculturas. Expostas no Museu Felícia Leirner – museu a céu aberto no entorno do Auditório Cláudio Santoro -, está disposta uma coleção de 108 peças da artista, distribuídas em 350 mil m² de área verde. Há réplicas de seus trabalhos no Museu de Arte Moderna de Paris, Roma, Amsterdã, Londres, Bélgica, Belgrado, Leningrado e Telavive, e Felícia coleciona prêmios de salões de arte, bienais e exposições no Brasil e no mundo.
“Dizem que comecei tarde a praticar a escultura. Não sei o que quer dizer tarde ou cedo. Pois não fui eu que ajudei a fazer as belas esculturas da Grécia, do Egito e da Índia? Não fui eu que ajudei a carregar as pedras e amassar o barro? Tudo está no tempo, como o tempo está em tudo. Nós estamos aqui para relembrar”, escreve Felícia em seus cadernos de diários, publicados no livro “Felícia Leirner: textos poéticos e aforismos” (Perspectiva, 2014).
A maternidade é o grande tema ou o tema verdadeiramente centralizador da obra de Felícia, embora possamos distinguir no conjunto, temas desconexos: o homem, a mulher, mãe e filha, o casal, grupos familiares, os habitáculos, as cruzes. Esses subtemas que dizem respeito à estrutura familiar, ao nascimento e à morte constituem juntos uma espécie de autobiografia escultórica da artista. Mesmo as séries de bichos e pássaros integram o filão sensível da escultora, compondo assim o seu universo familiar.
“Eu sinto a força da maternidade. Tudo para mim é amar e criar. Mesmo agora, com minha idade avançada, nada mudou para mim. Alguma coisa das mulheres bíblicas em mim ficou, e eu sinto ainda poder amar e criar, através de tudo o que pode germinar. E se o amor vier, com certeza vai se unir no mesmo espírito, e na minha arte nascerá.”
Para conhecer Felícia Leirner, proponho um passeio ao Museu Felícia Leirner em Campos do Jordão. A primeira vez em que lá estive, fiquei tão impactada com suas esculturas que senti uma vontade genuína de colocar no papel a admiração sem limites que sua arte havia me causado. Sentada no gramado, só sabia imaginar o sentimento de Deus no sétimo dia da criação e, desse sentimento divino, nasceu o poema “Fênix, Fogo, Felícia” para essa mulher abençoada. Na concepção de Felícia, “os homens abençoados são aqueles que penetram grutas profundas à procura do desconhecido – a sabedoria, a ciência, a arte. Ao revelar o que estava escondido, oferecem um banquete àqueles cuja alma precisava deste alimento para aliviar as dores da vida”. A arte de Felícia Leirner é este alimento.

FÊNIX, FOGO, FELÍCIA

Felícia sopra em minh’alma a derradeira chama.
Labaredas crescem, formas geométricas crepitam na lareira dos olhos.
O fogo de Felícia incendeia a sala, a casa, os campos.
Não há, para Felícia, paredes limítrofes ao fogo.
Não há, para Felícia, gaiolas limítrofes à criação.
Como pássaro, sua obra nasce para ser livre, pássaro é.
Como cimento, ferro e bronze, sua obra nasce para ser terra, terra é.
Como montanha, sua obra nasce para ser escultura, escultura é.
Sua arte, como o voo dos pássaros, nasce para nos transportar
da terra ao céu, do chão aos sonhos, da beleza à poesia de existir.
Em Felícia, é impossível permanecer de olhos cerrados, de pés no chão.
Em Felícia, aviva-se a chama que habita os habitáculos,
os bichos, as estruturas, as cruzes e os portais da alma.
E, ao seu sopro, somos levantados do chão.
Fênix que somos, renascidos do fogo de suas mãos.

  • O nome FELÍCIA é tradução de Fayga, que significa pássaro