Proseando : UM CHARME

Lembro-me dela. Morava ali, naquela casa rósea, espremida, desbotada, de reboco caindo, de paredes inseguras. Na janela, agora apodrecida, com visão da rua, ela se debruçava e dizia versos para quem passava. Versos que o coração sussurrava.

“É tão fácil colorir a vida alheia:
basta um sorriso
e a alma cheia
de improviso!”

A casa ainda mantém resquícios de um viço de outrora: o jardinzinho que enfrentou sóis impiedosos, invernos polares e chuvas oceânicas. Coitado! Há dois dias sabe que está fadado à extinção. Os demolidores, necessitados de dinheiro, pisoteiam Marias-sem-vergonha, arrancam arbustos, matam roseiras e outras espécies.

A construção centenária está inabitável. As paredes sofrem com a umidade. O madeiramento do telhado apodreceu.

Os vendavais se apiedaram de algumas telhas. Talvez o próximo não seja benevolente. Mas não há mais tempo.

Lembro-me dela. Na pontinha do nariz posicionava os óculos que não cumpriam a finalidade. Não precisavam. Tinha ela visão de águia; por isso, olhava sobre eles. Maluquinha! — cochichavam. Tadinha. Certa vez perguntei o motivo dos óculos. Ela me disse que achava um charme.

Era uma velhinha que não envelhecia. Uma velhice que parou no tempo, que não se arruinava. Tinha bochechas rosadas, cabelos algodoados e olhos cor do céu. Um pouco obesa. Caminhava se amparando na bengala herdada do pai. Não que precisasse, é que achava um charme.

Tive tardes inesquecíveis com ela. Ela me recebia com mesa farta, ao som de música caipira. Música raiz.

Tomávamos café com pães de queijo, broas e outras tantas especialidades dela. Entre um gole e outro, declamava poetas. Falava da vida. Falava do maior erro da sociedade ao afirmar que homem próspero é aquele que acumula bens materiais. Dizia ela: “Não é, não. Homem próspero é aquele que busca a evolução espiritual, exercendo, prioritariamente, a empatia. O homem bem sucedido é aquele que consegue matar todos os seus egoísmos.” Aprendi muito com ela.

Não gerou filhos, mas possuía muitos. Entre eles, médicos, engenheiros, empresários, pipoqueiros, marceneiros, motoristas. Talvez você também pertença a nossa família.
Lembro-me dela, minha querida professora do primeiro ano. Quanto charme!