Proseando : A MOÇA DO LEQUE
O casarão antiquíssimo de esquina tinha nova moradora. A moça tímida abandonara o casebre para habitar o imóvel, herança da madrinha. Ninguém a viu chegar. Provavelmente, se estabelecera na calada da noite.
Aparecia raramente, por minguados minutos, debruçada na janela, com leque imóvel a esconder-lhe a boca. Era tímida. Muito tímida.
O rapaz, morador do outro lado da rua, ao perceber que as aparições ocorriam num mesmo horário, passou a observá-la com assiduidade, e ficou fascinado pelos olhos azuis. Em pouco dias, nutria sentimento profundo por ela.
Movido pelo coração, atravessou a rua algumas vezes na intenção de abordá-la. Porém, toda vez quese aproximava, ela fechava a janela, rispidamente. As tentativas frustradas não o demoveram. Passou a escrever bilhetes românticos e a enfiá-los debaixo da porta do casarão. Durante semanas repetiu a ação, sem ser correspondido. Meses depois, propenso a desistir, encontrou pedacinho de papel debaixo da porta. A caligrafia era sofrível, assim como as concordâncias gramaticais, mas os olhos azuis tornavam insignificante qualquer agressão à Língua.
Passaram a trocar correspondências. No último bilhete, adocicou convite para jantarem no restaurante do bairro. Ela aceitou, dizendo que o encontraria no local indicado. “Sô vergonhenta. Agente vamo. Mais eu vô só eu, dispois vai ocê. Agente se encontremo lá”.
Na noite marcada, atravessava faixa de pedestres quando o motorista infringiu o sinal vermelho. Para não ser atropelado, saltou e, na queda, a boca chocou-se como chão. O impacto subtraiu-lhe incisivos. “E agora? Não posso ir banguelo ao encontro. Também não posso deixar de ir. Só Deus sabe como foi difícil convencê-la.”
Caminhou até o bar mais próximo a fim de remover o sangue. Após a higiene, observou dentaduras de plástico expostas na vitrine. Brincadeira de criança.
– Quanto é? Vou levar para meu sobrinho.
Minutos depois, meio gente, meio drácula, se acomodava à mesa do restaurante.
Ensaiava palavras para se acostumar ao acessório bucal quando a moça chegou, com o leque sobre a boca. Cavalheirescamente, puxou a cadeira para que ela se sentasse. Aproveitou para cochichar alguma ousadia aos ouvidos dela. Ela riu. Ele se encorajou:
– Me dá um beijo?
Ela curvou levemente a cabeça, demonstrando timidez.
– Cê promete que vai sê só um bejinho?
– Prome…
A última sílaba se agarrou à dentadura plástica que voou ao chão. O disfarce estava destruído.
Arrasado, ele ruía sobre a cadeira enquanto ela depositava o leque na mesa. Finalmente, pode ver os lábios sedutores e carnudos de sua amada; pode ver aquela boquinha cheia de dentes… de dentes podres.
– Vem bejá eu. Vem bejá eu.