Proseando : COM A MORTE NÃO SE BRINCA
Depois de incontáveis rescisões contratuais, Zé Molenga estava novamente empregado. O preguiçoso conseguira vaga na Funerária Bonfim, localizada no Beco Sem Saída. O dono do estabelecimento, sabedor da fama do recém-contratado, fez severa advertência:
– Vagabundo aqui, só morto, porque dá lucro. Tá entendido?
-Fique tranquilo. Meu nome agora é trabalho.
Sob a inspeção ferrenha do patrão tratou de remover a indolência dos atos. Recebia os clientes com cortesia e, aos mais inconformados, declamava poemas de aconchego. Quando a dúvida pairava quanto a esse ou àquele caixão, desfiava as vantagens dos mais caros.
– Esse aqui, minha senhora, feito de mogno maciço, todo aveludado, vem com travesseiro de plumas de ganso, antialérgico, contra torcicolos. Um luxo além da vida.
E se a dúvida persistia, ele a destruía com os versos decorados. Sua lábia trouxe prosperidade a funerária e lhe rendeu aumento.
Com ele trabalhavam mais dois: invejosos, enciumados, atentos a cada movimento do “queridinho do patrão”. Procuravam algum deslize para “ferrá-lo”.
Certa vez, Zé Molenga, após enfrentar madrugada movimentada, deitou-se num caixão do depósito e tirou sonecas. Foi flagrado por um dos colegas que quis contar ao patrão. O outro o impediu.
– Vamos fazer melhor. Vamos dar uma lição nele.
Na semana seguinte, Zé Molenga voltou ao depósito.
– É agora. Vamos lá!
A penumbra dificultava a visão, mas o ruído de tampa os direcionou para o caixão vermelho.
– Tem certeza de que é aquele?
– Claro. Você é surdo?
Pé ante pé se aproximaram e atarraxaram a tampa. Voltaram após 20 minutos e chacoalharam o caixão.
– São Pedro, chegou encomenda. Esse é o vagabundo da funerária – dizia um deles, modificando a voz.
– É um engano. Aqui no rol não tem ninguém com essa característica. Leve-o para as labaredas.
Naquele instante, pancadas ininterruptas na madeira antecederam gritos:
– Eu não morri! Não morri! Não quero ir pro inferno. Não morri! Estou ficando sem ar… Sem ar… Sem…
Os dois riam. Riam muito até que outro caixão se moveu na direção deles. Uma voz cavernosa gargalhou:
– Agora é a vez de vocês. Serão queimados vivos. Ah, ah, ah, ah!
Os dois saíram correndo e quase atropelaram o dono da funerária.
– Vocês estão loucos? Que correria é essa?
Terminavam a explicação quando Zé Molenga reapareceu, com lápis e papel na mão. O patrão o inquiriu:
– Fez a contagem do estoque?