Proseando : CORAÇÃO NEGRO
O caminhão de mudança chegou durante a madrugada transportando meia dúzia de móveis eeletrodomésticos, o suficiente para mobiliar a minúscula casa de esquina.
Assim que o sol bebeu o último orvalho, o novo morador passeou pelo bairro, e a primeira pessoa que encontrou foi o negro dono da banca de jornal. Depois de avaliar a compleição do microempresário, inquiriu: “Quais as manchetes de hoje, Pau-de-virar-tripa-de-urubu?”, e caiu na gargalhada.O faquir só não partiu para as vias de fato porque a brisa dificultava-lhe a locomoção.
A “fama racista” do novo morador se espalhou. Quando alguém o via, dizia: “Lá vem o ‘rei dos apelidos’! Se escondam!”. Certo fim de tarde, a negra exageradamente obesa bem que tentou se esconder, mas não conseguiu. Ele não perdoou:
– Chupeta de baleia!
Mas, tudo mudou quando o velho corcunda, de longas barbas brancas, pastor de um só carneiro, ao ouvi-lo apelidando a mulher, bateu com o cajado três vezes na calçada. E sorriu.
No dia seguinte, ao despertar, olhou-se no espelho, esfregou os olhos, estapeou-se, gritou e desmaiou. A imagem refletida era a da mulher obesa que apelidara na noite anterior. Assim que recuperou os sentidos, saiu às ruas atormentado e desequilibrado no salto agulha. Procurou compreender a situação: “Isso é um pesadelo. Daqui a pouco irei acordar.”
Embora habitasse outro corpo, não perdia a mania de constranger negros. Agora, a cada alcunha, se transferia para o corpo aviltado. Foi anão, caolho, fanho, orelhudo, narigudo… No sexto dia, entrou em desespero. Planejando suicídio, saiu correndo e se chocou com outro homem; ambos caíram na avenida. Antes que o caminhão os atropelasse, houve somente tempo para o último apelido:
– Filhote de urubu!
Foram dias e dias em coma. Quando acordou, encontrou senhora negra aos pés da cama.
– Meu filho, você vive!
O ‘rei dos apelidos’ arriscou, desconfiado:
– Mãe? Você é a minha mãe?
Ela segurou nas mãos dele e respondeu:
– Sim. Agora você é meu filho.
– Agora?
– Sim. Agora. A carreta atropelou você e meu filho. Ele não resistiu. Agora o coração dele bate dentro de você. Agora você é meu filho.