Proseando : COMPANHEIROS

O Senhor Y e o companheiro moravam naquele casebre, daquela rua, logo depois da cerejeira e antes da livraria do bairro. A primeira vez que se encontraram foi em frente ao restaurante. Amor à primeira vista.
Naquele dia, os olhos claros do companheiro estavam duas esferas melancólicas enfiadas no corpo cadavérico e sujo. Por causa das pernas chagadas, mal conseguia ficar em pé.
O Senhor Y o abraçou demoradamente e não titubeou em levá-lo consigo. Em casa, a primeira coisa que fez foi alimentá-lo. Depois do banho, curou-lhe as chagas. Em seguida, deitou-o na cama e o cobriu. O companheiro precisava recuperar a dignidade.
Era viúvo e possuía muitos dinheiros o Senhor Y. Seus filhos só o procuravam para subtrair-lhe vultosas quantias, gastas com desnecessidades. Quando contou aos filhos sobre o companheiro que amava e trouxera para morar com ele, foram conhecer o dito-cujo. Indignaram-se. Repudiaram o relacionamento. “Papai destrambelhou. Precisamos nos apropriar de todo o patrimônio antes que ele torre tudo com aquela coisa”.
E foi o que fizeram. Deixaram o pai à míngua. Tiraram-no do condomínio e o alocaram no casebre do jardim de vincas, onde passou a viver da minúscula aposentadoria. E como fonte seca não mata a sede, nunca mais viu os filhos.
Para preencher o tempo, toda a tarde passeava pelo jardim onde fazia declarações de amor, abraçava, beijava e enchia de carinhos o companheiro. A vizinhança espiava ao longe. Diziam que ele tinha parafusos a menos na cabeça, que talvez fosse perigoso.
Ninguém sabia, nem desconfiava da dor tatuada na alma do Senhor Y. Em todas as madrugadas seus olhos naufragavam na saudade enquanto folheava álbuns de fotografias para rever os filhos. Vivendo assim, foi definhando.
O dinheiro da aposentadoria tornou-se insuficiente para remédios e alimentação. Por isso, decidiu abolir medicamentos a fim de não prejudicar a alimentação do companheiro. E isso fez com que o Senhor Y adoecesse. O companheiro, por sua vez, ao vê-lo debilitado, deixou de comer e adoeceu também.
Semanas se passaram sem que o Senhor Y aparecesse no jardim. A vizinha que não tirava os cotovelos na janela para xeretear a vida alheia, estranhou. Reuniu outros curiosos do bairro e marcharam até aquele casebre, daquela rua, logo depois da cerejeira e antes da livraria do bairro.
Bateram à porta, chamaram o Senhor Y. Nenhuma resposta. O policial aposentado rodopiou e aplicou golpe com o pé na porta. Ela cedeu. Entraram com passos de bailarina e, ao chegar ao quarto, encontraram o Senhor Y deitado na cama, abraçado ao seu companheiro: um cão sem raça definida. Ambos sem vida.