História : Uma crônica da Pinda antiga
Ilustra a página de história de hoje uma crônica do escritor e poeta da Pindamonhangaba do final do século XIX e início do século XX, Joviano Homem de Mello (ver dados biográficos nesta página). O texto, conforme o autor identificou, integrava o seu livro denominado “Cupins” e foi publicado na edição de 20/2/1919 do jornal Tribuna do Norte, semanário do qual era assíduo colaborador e muito querido pelos leitores da época.
Texto literário um pouco triste ao leitor como nós incomodado com casos ou causos nos quais a ignorância resulta em maus tratos aos animais. Domesticados pelo homem de poucas posses (aquele que tinha somente o essencial pra sua sobrevivência) para as tarefas inerentes ao seu sustento e proteção, tinham como paga as migalhas da sobra que nem sempre pingavam… Realidade pelo menos diferente aos animais cujos donos viviam em egoísta opulência. Embora mais frequente no passado, infelizmente, isso de maus tratos ainda ocorre em pleno século XXI.
Segue então a história…
O caboclo
Aos domingos o caboclo vai ao mercado, na cidade, fazer compras. Monta a sua égua debilitada e ossuda, e vai o minguado potrinho correndo atrás deles, num trote áspero, cutucando a areia , à prumo rígido para amolecer daí a uma légua. Então abranda a carreira, de cansaço, ficando atrás, correndo…
E lá vai o caboclo, com a égua, para onde lhe dá na telha, sem se lembrar do potrinho, sem querer lembrar-se de que ele pode extenuar… Pensa: -“Não fai má, tá djunto da mãe”.
Pobre potrinho! Como se ele devesse ser a sombra daquela égua, acompanhando-a onde que fosse, com a mesma perseverança de ânimo, para afrouxar onde ela afrouxasse, cair onde ela caísse, ali, rente!
Não tem piedade! Não tem pena do bichinho… somente lá uma vez por outra. Num afago bruto, torce o corpo no lombilho e grita para trás a chupar os beiços:
– “Fiutch! Fiutch! Anda marvado!”. É raro que essa pequena caravana não alcance na estrada qualquer cavaleiro. Alcança… e passa. Mas o cavaleiro os encontra na primeira venda… e passa. Daí a pedaço são eles que vêm, deixando para trás o cavaleiro… já lá vão mais adiante… Ele pensando em nada, a égua riscando a areia com os cascos bambos e poentos envolvendo o filho, que segue atrás, num preguiçoso esgarce de fumosa poeira.
Pobre potrinho! Caminha a sonhar com o descanso duma outra venda… e o caboclo vai sonhando com um novo bago… da “boa”.
Assim, de venda em venda, chegam à cidade. O caboclo deixa os animais no rancho mais próximo do mercado e acomete o edifício da feira pela porta da pinga. Entra.
A compra consiste em três litros de feijão, cinco de farinha e um metro de fumo, ( os dois primeiros da pior qualidade) sempre fazendo meticuloso e infindos cálculos, a fim de sobejar o dinheiro do aguardente. O garrafão, levou o vazio, deve voltar cheio… e volta, sob pena de ficar o feijão.
Da ‘porva’ não esquece mesmo. Mais um golinho na bodega da saída e abala em busca do explosivo, com os dois saquinhos dançando pelas costas e o fumo espichando a pretura para fora do bolso. Já não anda em linha reta.
Compra a pólvora, porque a ‘pica-pau’ já está esperando para o suspirado encontro com a sabiá que tem filhotes na laranjeira mais próxima.
Momento depois a caravana retoma o caminho de casa. E então a égua conduz os sacos… e o maroto com o garrafão que são duas pessoas indistintas numa só pessoa distintamente bêbada!… Pouco acima deles, mordente, o sol faísca.
O potrinho também volta… tem forças ainda para voltar! Que remédio?… volta com fiapos gotejantes de hípidos pelos na barriga, pestanejando sempre, desajeitado e mole…
O caboclo já nem sabe dele, largado como está sobre o lombilho, com um peso lerdo, às vezes convulsionado pela efervescência do álcool, para chicotear-lhe a mãezinha, à toa, babujando palavras ocas e cheias de ameaças.
Ela caminha… É verdade, chegam! Ele vai questionar com a ‘muié’ por haver cometido o contrassenso de gastar os dois mil e duzentos do bolso esquerdo, destinados à compra de um chapéu de feltro para o “Diuquinha”.
O feijão fora pingado na estrada, por um buraco do saco. A mulher , que o não remendara, apanha surra tremenda.
Depois destas cenas dominicais, a égua é solta ao campo que, ao invés de exuberante verde, para restauração de forças idas, está amarelo, rapado, pois é um ângulo de campo – minguado cerco, porque o fazendeiro não quer que a criação dos agregados lhe infeste a pastagem, para que não encha de sarna e piolho o seu cavalo de sela, que ali está de cabeça alta e exaltadas crinas, enjoado da comida, fogoso e ávido, a rinchar pra égua, que cambaleia do outro lado, sem saber dele, esfaimada e estéril, tentando ainda uma vez a amarela polidez do rapado…
O potrinho dá-lhe focinhadas na ubre murcha, mas é sempre mal sucedido, e sedento, desanimado, a fitar o gramado rente e seco – fiel imagem da ubre mater, tão ávara para ele, lembra o colono infeliz a contemplar tristonho a terra infecunda que lhe nega o pão.
O poeta e escritor Joviano Homem de Mello
Nasceu em Pindamonhangaba no dia 25 de fevereiro de 1896. Filho do major João Alfredo Homem de Mello e de dona Maria Luisa Varella Lessa. Iniciou os estudos preliminares no Grupo Escolar Dr. Alfredo Pujol, em cujas aulas mostrou sua inteligência e aplicação no 3º ano, passando a cursar o 4º em São Paulo. Foi também aluno da professora dona Emygdia de Sousa. Ocupou o 1º lugar no quadro de honra muitas vezes, e deixou de receber a medalha de ouro, por ter empatadas as notas, cabendo ao seu colega por ser o mais velho. Cursou o Externato Coração de Jesus, dirigido pela educadora Ermelinda Salgado Magalhães.
Em 1909 empregou-se no comércio, em São Paulo, de onde regressou para o mesmo fim.
Nas horas de ócio, desocupado das lides comerciais, Joviano Homem de Mello entregou-se ao estudo da literatura e poesia, Compôs muitos versos, dentre os quais destacamos “Perdição”, poemeto que mereceu elogios da crítica.
Em 1917 deixou o comércio e partiu pra São Paulo a fim de matricular-se na Academia Prática de Comércio, cujo curso completou em 1918.
Durante o seu biênio escolar fundou “O Acadêmico”, órgão da escola, a revista “São Paulo Artístico” e publicou a 2ª edição da revista“Perdição”. Partiu para diversas cidades do Oeste onde ocupou os cargos de tesoureiro, secretário guarda-livros de Câmaras Municipais.
Em Pindamonhangaba foi também redator do “Porvir” e do “Albor” com Antonio Nogueira e Oswaldo Moreira, talentos da prosa elegante e versos inspirados.
Joviano Homem de Mello foi um rapaz esperançoso , inteligente e aplicado.
Athayde Marcondes nesta nota biográfica referente a Joviano Homem de Mello, publicada no Livro “Pindamonhangaba Através de Dois e meio Séculos” (1922), revela que Joviano Homem de Mello tinha “diversos livros prontos e em preparo”, citando “Bronzes no Ermo, Alfombras e outros.