Proseando : PALAVRA: REMÉDIO OU VENENO?
Ele é um homem puído, longevo, que há muito abandonou o vestuário convencional para usar túnica feita da juta de sacos de feijão, sobre a surrada calça jeans. Disse-me que durante muito tempo não teve raiz, e que só resolveu se estabelecer na cidadezinha onde nasci quando as pernas revogaram as longas caminhadas.
Mora ele no Trabiju, na modesta casa de três cômodos e duas janelas que espiam o sol adormecer. No avarandado, pendurou gaiolas sem portinholas, para que os passarinhos entrassem, habitassem, procriassem e saíssem quando quisessem.
Sobrevive das doações depessoas que o procuram para beberem sua sabedoria. Eu estava no grupo quando ele falou:
— Quem crê em tudo que ouve sem investigar, corre o risco de ser escravo da inverdade.
—Como assim, mestre?— interrogou o jovem com sardas no rosto.
Ele sorriu.
— A palavra é poderosíssima. É céu ou abismo. Remédio ou veneno.
— Pode explicar melhor, por favor?— perguntou a jovem negra.
— Se temperada com empatia, salva; com desprezo, abisma.
O homem de meia idade, tamborilando no chapéu, enrubesceu:
— Não entendi nadica de nada.
— Vou explicar de outra maneira. Certa vez, um homem cuspido pela sociedade, decidiu se matar. Mas antes do ato definitivo, prometeu a si mesmo que se alguém o valorasse, abandonaria a decisão. Assim, levantou-se do papelão na calçada e saiu pelas ruas. Minutos depois, encontrou o homem em trajes finos. Arriscou: “Bom dia, senhor”. O homem, ao vê-lo, cuspiu no chão, pisou sobre o cuspe e retrucou: “Quem você pensa que é para falar comigo, seu verme? Mendigo que não vale o prato que come. Se é que come. Não me encha o saco”.
A loirinha indignou-se:
— Que monstro!
Prosseguiu ele:
— Esse homem, que vivia na mendicância, deitou-se sobre os trilhos do trem e ficou esperando pelo apito fatal. Não morreu por causa do cachorrinho que escapou da coleira. A dona correu atrás dele e o alcançou ao lado desse homem. Ao vê-lo, ela se condoeu e o dissuadiu com palavras e gestos de carinho.
— Conversa pra boi dormir! —murmurou o homem de cenho nublado — Pode provar? Afinal, o senhor disse que não devemos confiar em tudo que ouvimos.
Pacientemente, enfiou a mão num dos bolsos da calça.
—Aqui estão fotos do mendigo e da mulher. Reparem bem. Eu sou ele. Ela me deu abrigo e comida. Infelizmente, morreu meses depois. No leito de morte pediu que eu levasse o poder da palavra àqueles que cruzassem meu caminho.