SOBRE VIVÊNCIA
Existem vários lugares inóspitos, entre eles, o Polo Sul e o Saara. Não consigo me imaginar habitando a extremidade mais fria do planeta, cuja temperatura pode chegar a 80ºC negativos no inverno. Não me adaptaria àquele lugar cujas noites duram seis meses, e os dias, também. Naquele território, propício para pinguins e afins, nem esquimó se arrisca. Da mesma forma, impensável criar raízes no Saara ecorrer o risco de um encontro ocasional com a temível crotalus cerastes, a peçonhenta cobra de chifres; ou de enfrentar perigosas tempestades de areia, e temperaturas de 50ºC positivos durante o dia e 5ºC negativos à noite. Só de pensar em deserto, sinto sede.
Todavia, creio que, entre os lugares inóspitos de nosso planeta, há um ainda mais severo, onde os dias são frustrantes, as noites são vazias e as madrugadas, lacrimais. Que lugar é esse? O asilo. Por mais que os cuidadores sejam dedicados e pacientes diante de qualquer destempero, ainda assim é um lugar dedesconforto.
Faz muito tempo, mas não esqueço a primeira vez que entrei num asilo. Conheci a Dorinha – a senhorinha de oitenta e tantos anos com mal de Alzheimer – que mantinha os olhos espremidos na direção do portão, esperando por alguém da família. Quando alguma moça aparecia em dia de visita, dizia com sorriso largo: “É a minha filha”. Não era. A coitadinha morreu sem perder a esperança.
Lembro também doTonico, se locomovia na cadeira de rodas por culpa do diabete. Era um sujeito calado, o que dificultou o início de nossa amizade. Tocava gaita, mas somente em noites de lua cheia. Músicas românticas, as mesmas que tocava para a esposa. Certa madrugada, o vi chorando. Contou-me ter ficado viúvo, exatamente numa noite de lua cheia. Tonico morreu de saudade.
Figurinha carimbada era a Dona Lelé, que se irritava com qualquer coisa. Se desconfiasse de alguém fofocando sobre ela (o que não era raro) começava a ranzinzar utilizando o vocabulário vastíssimo de palavras chulas. Quando estava de bom humor (quase nunca), contava piadas engraçadíssimas, repletas de obscenidades. Não a vi, nem a ouvi, mas dizem que a última palavra que falou antes de morrer foi um palavrão.
E o Caetano? Como me esquecer do Caetano! Mulherengo que se divorciou onze vezes, ou mais. “Perdi a conta”, dizia. Boa gente, mas malandro sem concorrente. Inventou a cegueira para tocar nas mulheres, principalmente nas visitas, sem ser repreendido. Algumas cuidadoras até sabiam da farsa. Mas como delatar o velhinho, caindo aos pedaços, que já estava no estágio de morre não morre? Morreu no último inverno, vítima da pressão alta.
Como o tempo passa! Parece que foi ontem. Depois de certa idade, o tempo cisma em pisar no acelerador para antecipar a última freada. Já são quase duas da madrugada e ainda não tomei o rivotril. Preciso descansar. Outro dia conto sobre outros internos. Por hoje, basta o que escrevi tentando enganar a solidão. Amanhã, quem sabe alguém se lembre de mim e venha me visitar neste lúgubre asilo.