Proseando : Cada uma
Conduziu-se na cadeira de rodas até a mesinha onde ficava o telefone, aquele de discagem, modelo antigo. A esposa ajeitava os óculos na ponta do nariz para reiniciar o tricô. A décima netinha, que nasceria no próximo inverno, ganharia um vestidinho rosa.
Ele estava eufórico. Encontrara, num papelzinho entre documentos antigos, o número de telefone do melhor amigo que não via há mais de quarenta anos.
— Vai ver até já bateu as botas.
—Vire essa boca pra lá, mulher. Trata-se do meu melhor amigo.
— Melhor amigo? Por que não se reencontraram mais?
Ele socou a mesinha. Depois ficou assoprando a mão. Engolindo as dores, discou e aguardou a resposta até cair a linha. Repetiu a discagem outras vezes.
— Vai ver nem é mais esse o número do telefone dele.
— É… Talvez você tenha razão.
Ia afastando o telefone do ouvido quando:
— Alô!
— Atendeu — disse à esposa, tapando o bocal do aparelho com a mão.Apesar da voz rouca e frouxa, não tinha dúvidas de que era o amigo.
— Alô, Onofre?
— Quem?
— Onofre!
— Cofre?
—Onofre. Eu disseO-no-fre.
— Que cofre? Eu não tenho cofre e não quero comprar nenhum cofre. Sabe que horas são? Quem é você para me perturbar com esse negócio de cofre às 22 horas?
— Digo já: sou seu amigo Adalto.
— Está em perigo? Assalto? Quer que eu chame a polícia?
— Eu estou bem…
— Refém? Meu Deus. Eu não tenho dinheiro, mas tenho um filho que comanda o vigésimo distrito. Me passa o endereço.
— Você está mouco?
— Louco?
— Não, querido.
— Varrido? Louco varrido? Quem: você ou quem faz você de refém?
Ele ficou em silêncio.
— Desembucha
Decepcionado, desligou o telefone. A esposa perguntou o que havia acontecido.
— Você tinha razão, o número de telefone não é mais dele.
Na outra casa, o outro octogenário resmungava:
— Me passaram um trote, benhê. Fim dos tempos! Sabe sobre o que me perguntaram? Sobre o cofre.
— Sobre o Onofre? Você não disse que aqui não tinha nenhum Onofre? Que Onofre era o antigo morador que no ano passado vestiu o paletó de madeira?