Lembranças Literárias : Lembranças Literárias

O saxofone
do Oclides

O Oclides, como era mais conhecido, tinha um clarinete. Pelas noites calmas da sua cidadezinha, enchia de sons as madrugadas, em serenatas. O Oclides tocava, ficava deslumbrado, maravilhado, embebecido, mas não se satisfazia. Faltava-lhe alguma coisa. Não se satisfazia porque tocava clarinete pensando em saxofone.

Só que pensava num instrumento com um montão de chaves, prateado, dourado o recamado de madre-perólas. E nas noites mal-dormidas sonhava e se via sozinho tocando aquele instrumentão e acordava num pesadelo ante a realidade do quartinho humilde e, só o que via de verdade e de algum valor era a sua máquina de costura. Ia-me esquecendo de dizer: o Oclides era alfaiate. Como alfaiate trabalhava pra burro nas festas de fins de anos, nas semanas santas e nos meses de maio inteirinho, quando todo mundo cismava de se casar.

No entrameio dessas épocas comia tudo que ganhara, porque serviço mesmo, não aparecia. Um dia resolveu-se. Vendeu o clarinete, o relógio Estrada de Ferro, que foi de seu pai, o tesourão e até um corte de tergal dum freguês. A máquina penhorou-a. Desse o que viesse.

Com o dinheiro no bolso, encomendou por catálogo, um sax numa casa de instrumentos da capital. Dormir não dormia mais. Comer, comia cada dia menos. O Oclides adoeceu. A princípio, nada de mais. Só uma tossinha ardida, febre e uns calafrios. Depois foi piorando… piorando…

Tirou chapa dos pulmões no Centro de Saúde e lhe receitaram um xarope de agrião, repouso e boa alimentação. Numa tarde o carteiro veio avisar que ele tinha uma encomenda pelo reembolso postal.
Era o saxofone do Oclides.

Não aguentou. Retirou o instrumento da caixa e o trouxe reverberando pelas ruas. Queria que todos vissem o seu saxofone. Seus olhos febris pareciam gargalhar de tanta alegria. Pensou: agora sim! Tocaria até na banda. Ninguém tem um igual!
Só às tantas da noite é que teve coragem de experimentá-lo. Pegou carinhosamente o instrumento. Esboçou um sorriso, pôs a boca no bocal, se ajeitou na cadeira, molhou de cuspe a palheta, estufou o peitode ar e, num esforço que já nem era seu, tentou tirar uma nota. Só saiu um lamento desafinado e o Oclides tombou de bruços sobre a cama.

A manhã veio encontrá-lo com o saxofone ainda pendurado no pescoço. O sax estava fosco, sem brilho, embaçado e seus dedos, qual garras, comprimiam as chaves, emperradas de sangue coagulado. Triste ironia! Sob o seu corpo foi encontrada a partitura amassada da valsa “Saudades de minha terra”. O saxofone ficou, mas o Oclides se foi. O Oclides… teve um saxofone.

Francisco de Palma, “Quito”,
Tribuna do Norte, 14/1/1978

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