História : Lembranças Literárias

De manhã

Atiro para os ombros um capote,
monto a cavalo e sigo estrada afora.
Sorri nos céus, meiga e rosada, aurora
entre nuvens de togo e chamalote.

Corre por tudo um frêmito de festa
cindindo a bruma leve dos espaços,
vão-se trêfegos bandos de sanhaços
para o Te Deum Laudamus da floresta.

Descem as caboclinhas para a fonte.
Passam para as campinas os camaradas.
E há cantigas de amor, doces toadas,
num cafezal que sobe pelo monte.

Penetro numa rústica vereda,
junto às límpidas águas d’um regato,
– Trêmula fita rutila de seda
que vai torcicolando pelo mato. –

O céu azul parece de veludo.
A relva tem semblante de ametista.
Que pábulo divino para a vista!

Encontro um caçador junto ao caminho,
negaceando os nambús: má catadura,
A tiracolo a bolsa e o polvarinho,
chapéu de palha e faca na cintura.

Agora é uma paineira, resoante
Da garulhice matinal dos ninhos,
em cuja fronde enorme e vicejante
há flores, borboletas, passarinhos.

Aqui, por uma aberta da espessura,
vejo dos tangarás a alegre dança;
uma orquídea de um tronco se pendura,
um picapau num galho se balança.

Depois de uma porteira um descampado:
Sob aos ares o fumo d’uma choça,
passa um homem por mim, vai para a roça
pés descalços, camisa de riscado.

Caminho mais. O sol abre a pupila
no alto dos céus, e já bem perto avulta
entre paineiras altas semioculta
a branca torre da matriz da vila.

Vem para a missa grupos campesinos,
rincha um carro moroso pela estrada,
enquanto vibra na manhã dourada,
o festival repinicar dos sinos.

Ricardo Gonçalves,
Tribuna do Norte, 21/9/1905

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