Proseando : LIVROS, UM TESOURO INCALCULÁVEL
Não se intimidava com o número de páginas. Quantas mais, melhor. Devorava-os em qualquer local: filas, ônibus, durante as refeições, antes de dormir. Chegou a ler algumas vezes debaixo do chuveiro, sob guarda-chuva. Mas desistiu depois que um livro lhe escapuliu para executar nado livre. Às vezes, caminhando pelas calçadas, livro em punho, colide com pedestres e o que houver na frente. A cicatriz na testa é a assinatura de um poste de trânsito.
Quando chegava a casa, beijava, às pressas, esposa e filhos, e corria para o santuário: a biblioteca, que evoluía devido a doações de amigos. Comprara poucos títulos, pois era parcimonioso.
– Parcimonioso? Muquirana, mão-de-vaca, isso sim. Deixa faltar de tudo nessa casa. Acreditam que ele esconde papel higiênico? Quando precisamos, nos dá um pedacinho desse tamanhinho. Não dá pra limpar nem meio fiofó. – reclamava a esposa que, se pudesse, queimaria todos os livros do mundo.
Se ele era instruído e sovina, ela era inculta e perdulária, motivo que a fez perder, depois de incontáveis prejuízos bancários, talão de cheques e cartão de crédito, confiscados por ele. Desde então, tirar centavo do miserável era quase impossível.
Tinha ele mania de guardar dinheiro em casa. Se ela soubesse que havia cédulas de cem reais entre as folhas dos livros, teria feito grande estrago. Ele saia para o trabalho, despreocupado, pois sabia que os livros eram esconderijos perfeitos, uma vez que tinha ela ojeriza por eles. Os livros da coleção de capa vermelha eram os mais “recheados”. Dez mil ou mais.
Pela manhã:
– Preciso de dinheiro!
– Dinheiro para quê?
– Pras minhas necessidades.
– Quais?
– Cabeleireiro. Manicure. Quero comprar uma blusinha que vi ontem. Quero ficar mais linda pra você.
Ele bebeu o último gole de café e sorriu.
– Não precisa. Você é perfeita.
E se levantou para o trabalho. No fim do dia, ao retornar com mais alguns livros, correu para a biblioteca. Quase desfaleceu.
– Mulher!!! Cadê a coleção de literatura estrangeira?
Ela se aproximou, mas não entrou. O cheiro de livros atacava-lhe a rinite.
– Aquela porcariazinha vermelha?
– Livros raríssimos. Onde você a enfiou?
– Você não me deu o dinheiro que eu precisava. Assim que você saiu, passou um senhor querendo comprar livros velhos. Deixei-o entrar e escolher da sua biblioteca. Vendi por duzentos reais.