Proseando : O PAI DO PAI (Dedicado ao meu amigo Ricardo Estevão de Almeida)
Mais uma vez o menino não dormiu. Não podia. Mesmo que pudesse, os pensamentos desfavoreciam sonhos. Mais uma vez passou noite e madrugada enganando o corpo com descansos diminutos.
Levantou-se antes do primeiro fio de sol. Mesmo sem fome, engoliu café e comeu fatia de bolo. Depois beijou as mãos do pai e a fronte da mãe, e se descalçou para caminhar até o riozinho, a quem pediria permissão para se irrigar. Não iria sozinho. Carregaria seus amigos de pelúcia: o leão, o macaco e o dinossauro, que possuíam a chave de portais para outras dimensões.
O riozinho era logo ali, pertinho do olhar. Toda vez que o menino mergulhava os pés naquelas águas virginais, o vento sussurrava: “Os riozinhos são artérias da Terra”. Em seguida, ele fechava os olhos, ouvia o farfalhar das águas, e sentia lambidelas curando seus ferimentos. Acautelava-se para não descompor a harmonia das pedras do leito, que acarinhavam seus pés.
Às vezes, se deitava na relva e contemplava o passeiozinho das nuvens. Algumas se enroscavam no arvoredo; outras, na montanha. Mestras na arte da ludicidade, criavam figuras para o menino adivinhar. Quando iam embora, o menino se entristecia, e as palavras glaciais ditas pelos senhores de branco renasciam para aterrorizá-lo.
Quando a fé cismava enfraquecer, o leão rugia, e seu rugido reabria o portal da esperança. O leão sabia da existência de uma força maior do que qualquer dúvida. Uma força capaz de contradizer todos os sábios.
Quando o menino se sentia impotente, o macaco o levava para o galho mais alto da mais alta árvore, de onde tocavam o céu e eram tocados pelo dedo de Deus.
Quando o menino chorava por pensar na finitude da vida, o dinossauro se deitava ao lado dele e dizia: “O tempo não desintegra quem mora no coração cheio de amor”.
E assim, depois de ter deixado as cachoeiras dos olhos misturadas nas artérias da Terra, o menino estava pronto para prosseguir na missão indelegável. Com a esperança reavivada, passou pelos boizinhos e cumprimentou cada um deles, chamando-os pelo nome.
Os dias eram difíceis, preenchidos com orações, promessas e novenas. O menino, que usava óculos semelhantes aos da mãe, herdou bigodes e adereçou a cabeça com chapéu de fazendeiro, igual ao do pai.
O menino, irmão de gatos, cães, passarinhos, bois, flores, galinhas, rios e montanhas, ainda não sabe que tem asas. Ele é um anjo que se transformou em pai do pai.