O Percurso
Infalivelmente, às 5h30 da manhã, o canecão de água para fazer o café estava indo para o fogo. Sobre a mesa, devidamente colocados: o açucareiro, a xícara e a manteiga. Descia dois lances de escada, abria a porta, o portão e acessava a rua, fizesse chuva ou sol, às 6 horas da manhã já estava na porta da padaria que exalava do lado de fora o perfume do pão fresco acabado de sair do forno.
Fazia o caminho de volta certamente desejando “bom dia” a muita gente.
Devido ao tempo que o pote estivera sobre a mesa, a manteiga já se encontrava numa textura ideal para que fosse espalhada sobre o pão crocante com mais facilidade.
Este era seu café da manhã, o sabor do dia amanhecendo que traria a ele mais uma oportunidade de encontrar as pessoas, cumprimentar um a um no percurso que transcorreria da porta do seu apartamento no prédio onde morava até a praça Monsenhor Marcondes, passava pelo porteiro do edifício ao lado, o guardador de carros, alguns vizinhos da rua, os funcionários e donos das lojas abrindo seus estabelecimentos, os atendentes das farmácias, os amigos da praça e tantos outros… Aliás, a praça da sua infância, viu ali tanta coisa acontecer!
Quantas vezes a Euterpe em apresentações festivas, os comícios, o antigo clube literário que tinha sua sede ali, o cinema onde não perdia um filme de faroeste sequer em sua época de juventude, a praça onde em dias de sol, ele buscava o banco vago que mais o colocasse defronte ao astro-rei, fonte inesgotável de vida, calor que aquecia seu corpo e que nutria sua alma, hoje via na praça o grande motivo de estar ali, via gente, que da mesma forma que o sol, também nutria-lhe a alma! Pessoas que circulavam diariamente, antigos conhecidos, e novos rostos que talvez nem o notasse, mas ele notava tudo e todos.
Logo mais no meio da manhã, uma pausa para uma água mineral com gás e um salgado num dos tantos estabelecimentos das proximidades e em seguida dirigia-se ao supermercado para levar para casa a mistura para o almoço e quase com a mesma frequência passava pela farmácia onde cultivava grandes amigos pelos quais ele nutria enorme confiança em receitar-lhe algo que resolveria de vez cada pequeno problema que o acometesse.
E assim se resumia sua parte da manhã, cujo percurso de volta ele o fazia com o vagar de sempre para não perder a oportunidade de olhar as pessoas nos olhos, lembrar dos seus nomes e os cumprimentar estendendo-lhes a mão, sempre com entusiasmo e palavras positivas, aos homens talvez um comentário sobre o time de futebol, o jogo do final de semana, às mulheres sempre palavras gentis, aliás, gentileza no trato com as pessoas era sua marca registrada.
A correção das palavras, a dicção caprichada, a pronúncia impecável. Assim como sua postura ao sentar-se no banco do “jardim”, elegantemente postado e altivo, praticamente um lorde, um cavalheiro com toda certeza.
Os aniversários jamais eram esquecidos, as datas comemorativas todas nunca passavam em branco, sobretudo com os membros da família. Um cunhado carinhoso, um tio atencioso, um irmão cuidadoso, um amigo, uma pessoa querida que estava sempre pronta a servir e atender, a prestar algum tipo de ajuda, a ser útil a quem quer que fosse, demonstrava isso na espontânea distribuição da correspondência aos vizinhos do prédio, ao se prontificar a ligar solicitando o botijão de gás, ao se colocar na posição de auxílio.
Após o almoço, um breve cochilo, a barba, o banho e de volta à praça para encontrar desta vez outras tantas pessoas que tinham neste período seu horário de trabalho.
A ausência de alguém do cotidiano lhe chamava atenção, procurava saber o que havia se passado com os que não se faziam presentes, sem dificuldade alguma em travar diálogos inclusive com desconhecidos, bastava se sentar ao seu lado no banco da praça e logo a troca de assuntos corriqueiros ficava estabelecida.
Nos dias chuvosos e nos invernos sua rotina se modificava um pouco, mas não a ponto de impedi-lo de fazer seu percurso, estabelecer seu trajeto e falar com as pessoas.
Porém, aconteceu que em pleno mês de março e nos meses subsequentes deste ano de 2020 que vivemos, chegou um tipo de inverno que foi muito cruel, um inverno onde todos os dias eram chuvosos mesmo fazendo muito sol, um estado das coisas que transformou todos os dias em domingos e fez com que todo mundo estivesse obrigado a permanecer dentro de casa.
A recomendação era esta, “Fique em casa”! No princípio se achava que seria uma coisa rápida, um breve período, mas não foi.
O José Francisco, o ‘nosso Chiquinho’ insistia em cumprir diariamente a sua rotina tão confortável e que lhe fazia tanto bem. Ele continuou acordando as 5h30 e fazendo seu café, continuou indo as 6 horas da manhã buscar o pão fresquinho na padaria, mas lá ele nem podia mais entrar para saudar alegremente as pessoas e haviam tantos ainda a serem saudados num único dia… E ele permaneceu fiel a sua rotina, a percorrer seu trajeto do apartamento até a praça, ele fez tudo para que seu percurso não fosse afetado, ele diariamente ia, mas as pessoas não estavam mais lá, as lojas não abriam, os funcionários dos estabelecimentos não circulavam, seus amigos haviam sumido.
Inevitavelmente em sua mente surgiram muitas e muitas questões como estas: – Onde está todo mundo?
– Será que semana que vem tudo isto vai ter acabado? – Como é desagradável o uso dessas máscaras, não se pode ver mais o sorriso das pessoas?
E para todas estas perguntas, por mais que os noticiários esclarecessem, não lhe era suficiente nenhuma resposta.
Num certo dia, inacreditavelmente, os bancos da praça estavam interditados e novas questões certamente surgiram: – Mas como assim? – Não se pode mais sentar nos bancos da praça? – Não se pode mais estender a mão para cumprimentar as pessoas? – Que mundo é esse?
Ficou tudo diferente demais!
E desta forma, estava estabelecido o caos interior, sua rotina da qual ele tanto precisava estava definitivamente quebrada, seu percurso diário interrompido, tal qual um carreiro de formigas desfeito, esta nova realidade não combinava com seu velho e prazeroso jeito de ser, com seu propósito de vida, com a sua escolha de vida.
Ele era a mesma pessoa, mas o mundo já não era mais o mesmo. E neste tipo de mundo, não havia mais lugar para alguém tão afetuoso.
Que nós tenhamos as melhores recordações desse ser humano de qualidades que não se vê todo dia. As enfermidades vieram e com a gravidade delas, mesmo vindo morar com a família e recebendo todo nosso carinho e todos os cuidados médicos, esta definitivamente não era a forma de viver escolhida por ele, pois ele não era mais capaz de realizar diariamente o “SEU PERCURSO”.
E assim sendo, infelizmente tivemos que dar adeus ao José Francisco Leme Celidonio.
Ao querido Chico.
Ao nosso Chiquinho!
(Em nome da família, por Rhosana Dalle, sua cunhada)