Proseando : PASSAGEIRO FANTASMA

O tempo, que parece ter diminuído, continua do mesmo tamanho. A impressão equivocada da exiguidade temporal é provocada pelo acúmulo de atividades, sejam elas domésticas, profissionais ou sociais. Estamos vivendo como máquinas. Estamos vivendo a era da pressão absoluta, a era das enfermidades físicas e, principalmente, das mentais.

Trabalho na cidade vizinha, com números. Vou e volto ensardinhado nos veículos intermunicipais. Já devia estar aposentado, mas, meu coração generoso (para não dizer outra coisa) me fez laborar sem registro por vários anos.

Na última terça-feira acelerei meus passos para não perder a condução das 17h50min. Enfrentei a fila, tranquilizado pelos fones de ouvido que me ofereciam Beethoven. Ocupei uma poltrona do corredor, atrás de um homem de cabelos desgrenhados. Considerando o odor que exalava, devia estar pelo menos há semanas sem banho. Minhas narinas ensaiaram protesto, mas, graças a Deus, o ônibus partiu, fazendo com que as janelas engolissem vento fresco.

Depois de alguns metros percorridos comecei a ouvir uma voz forte, substanciosa. Era daquele homem. Falava de grandezas. Falava que os filhos estavam na Europa. Falava que, em breve, estaria com eles revisitando a Torre Eiffel, a Gioconda, a Basílica de São Pedro.

Confesso que fiquei impressionado com a verborragia daquele senhor. Confesso que estiquei as orelhas e periscopiei para saber quem seria aquele, ou aquela, que o ouvia. Para meu espanto, não havia ninguém. Ele falava com a janela. Mas falava sem se enroscar nas frases, com pausas exatas, numa invencionice verossímil. Pensei: “Perdeu o juízo”.

Continuei atento à locução do homem. “...Ah, sim. No próximo fim de semana irei à Urca. Não aguento mais o Roberto Carlos me ligar, exigindo a minha presença na mansão dele. Ele quer me apresentar à nova namorada dele; quer saber se eu a aprovo. Disse que também quer que rememoremos a nossa infância. Tempo bom, viu. Uma pena o Erasmo não estar mais entre nós”.
O ônibus se aproximava do meu ponto. Levantei-me e caminhei até próximo da porta. Comentei com a moça que viajava em pé.
— Olhe discretamente para aquele homem. Acredito que tenha um parafuso a menos, pois fica conversando com ninguém.
— Qual homem, senhor?
— Aquele, naquele banco — apontei.
A mocinha olhou na direção do meu dedo e olhou pra mim.
— Naquele banco?
— Isso, mas não aponte o dedo desse jeito. Seja discreta.
O ônibus parou para que eu descesse. Desci ouvindo-a dizer:
— Senhor, naquele banco não tem, nem tinha ninguém.

  • Maurício Cavalheiro ocupa a cadeira nº 30 da APL - Academia Pindamonhangabense de Letra