Proseando : POST MORTEM

— Trouxe o diário?
— Diário? Qual diário?
— O diário da sua vida.
— Como assim?
— Sabe aquele caderninho no qual estão registrados todos os seus erros e acertos? Então, é aquele. Trouxe?
— Não tenho nenhum diário. Nunca tive.
O arcanjo balançou a cabeça e convocou testemunhas.
— Eis aqui mais um esquecidinho.
E prosseguiu:
— Diante das testemunhas o senhor reafirma que não trouxe o seu diário?
— Já disse que não tenho diário.
Sem se aborrecer, o arcanjo estalou os dedos e num piscar de olhos apareceu o anjo de óculos com lentes fundo de garrafa, trazendo um cartapácio.
— Obrigado. Temos aqui uma cópia fidedigna de seu diário.
Em seguida, abriu o manuscrito e o folheou. Deteve-se para leitura e riu algumas vezes. Noutras, ensombreceu o cenho.
— Onde o senhor estava no dia dezesseis de outubro de 1989, precisamente às 4h30?
— Ah! Isso faz muito tempo. Nunca tive boa memória. Não me recordo.
— Não se preocupe. Está tudo escritinho aqui. Vamos lá. Nesse dia, o senhor saiu de uma balada cheio de álcool nas veias e tropeçou num mendigo dormindo na calçada. Enfurecido, chutou repetidas vezes o indigente até sangrá-lo. E não se arrependeu.
— Eu? Eu não fiz isso.
— Fez sim. Está registrado. E o que está registrado é verdadeiro.
— Não fiz. Juro.
— No dia oito de janeiro de 2012, o senhor cometeu adultério com sua cunhada. E não se arrependeu. Se lembra disso?
— Tá louco? Nunca traí ninguém.
— Está escrito aqui. E se está escrito…
Folheou mais algumas páginas.
— No dia onze de novembro de 2019 o senhor arrombou o cofre da empresa e se apossou dos dólares e das joias. E também não se arrependeu.
— Quanta loucura! Não fiz nada disso.
— Bem. Acho que já chega. Infelizmente, não podemos deixá-lo entrar. O senhor será enviado para o caldeirão das chamas eternas.
— Não! Por favor. Eu sou inocente.
Agarrado pelos braços, fui arrastado até o elevador. Assim que a porta abriu, o anjo de óculos com lentes fundo de garrafa reapareceu e gritou:
— Parem, imediatamente! Eu cometi um erro. Trata-se de um homônimo.
Acordei encharcado de suor. Depois do banho, meu primeiro ato será comprar um diário.

  • Maurício Cavalheiro ocupa a cadeira nº 30 da APL - Academia Pindamonhangabense de Letra