Proseando : QUEM NÃO DEVE NÃO TREME

Depois de vários anos na penúria, ele ganhou uma bolada no jogo de bicho, graças ao sonho persistente
com o cunhado. Deu burro na cabeça.

Assim que chegou com os bolsos recheados, pediu à esposa que parasse de cerzir sua cueca furada, à
filha que deixasse o banheiro para limpar depois e ao filho que jogasse fora a comida de anteontem.

— Iremos ao supermercado. Acabou a miséria, família.

Como ninguém deu importância a ele, arrancou a bolada dos bolsos.

— Posso pedir biscoitos recheados? — inquiriu o filho.

— E eu, aquele shampoo das estrelas? ¬— indagou a filha.

— Você está dizendo que, depois de tantos anos teremos carne? — deslumbrouse a esposa.

— Tudo o que quiserem.
Cada um encherá um carrinho. O que acham?

Ele era um bom homem, mas trabalhar que é bom, nada. Mudara-se de cidade várias vezes, pois empres tava dinheiro e não pagava. Deixava os agiotas a ver navios.

No supermercado, como combinado, cada um enchia um carrinho. Quando estavam na fila, a esposa observou:

— Aquele que está vindo não é o cara de quem você emprestou uma grana preta? Pagou?

Ele espremeu os olhos. Não bastasse a miopia, a idade estava catarateando seus dois olhos.

— Meu Jesus Cristinho! É ele mesmo. Não paguei. Ele tem fama de que tritura quem fica devendo a ele. Vamos sumir da fila.

Sem alternativa, o comboio de quatro carrinhos serpenteou os corredores do estabelecimento.

— Estamos chamando a atenção de muita gente. Vamos nos separar.

Meia hora depois, ele parou para retomar o fôlego. Estava no corredor de papel higiênico. Nesse momento, o homem apareceu vindo em sua direção. Suas pernas bambearam. Pensou em fugir, mas as pernas não o  obedeciam. Por pouco não precisou usar um daqueles produtos ali mesmo.

— Não me espanque, por favor. Eu tenho mulher e filhos. Eu vou pagar o que devo.

Enfiou a mão no bolso e deu quase todo o dinheiro ao homem que tentou dizer alguma coisa. Mas ele saiu correndo, levando a família até o estacionamento. Dentro do carro, desmoronou no banco. A esposa o abanava com um folheto do supermercado. Minutos depois, enfiou a mão no outro bolso e mostrou
outra bolada de dinheiro.

— Consegui salvar essa grana. Depois a gente volta. Nesse momento, alguém diz ao lado do carro:

— Ora, ora, se não é o Zé… ou melhor, o Zé Pilantra! Pensou que ia me dar calote? — nisso, o homem
arranca o dinheiro da mão dele — Vou ficar com esse só pra pagar os juros que me deve — e foi embora.

O Zé só percebeu que o homem dentro do supermercado não era o agiota, quando este passou por ele
e o agradeceu.