Nossa Terra Nossa Gente : Velha Amiga
“Está lá o corpo estendido no chão…” Tronco, galhos, folhas, flores, ninhos, sombra para os dias de verão, a máquina divina de capturar gás carbônico e processar oxigênio. Terá vivido cinquenta, setenta, cem anos? Não sabemos! Só sei do seu tronco robusto, de quase um metro de diâmetro; de seus quatro andares de altura; de suas raízes majestosas, agora expostas sobre o asfalto como um dente de siso preso às garras do boticão; e de sua extrema generosidade, pois mesmo após os violentos golpes da forte ventania, caiu e não feriu ninguém!
Nós, moradores da Fausto Vilas Boas, na Vila Borghese, ficamos perplexos: saímos às janelas e, tão logo a tempestade passou, fomos espiar de perto o corpo da giganta pau-ferro (Caesalpinia leiostachya) estendido na rua e, sob sua majestosa arquitetura – Oh, my God! -, um carro agonizava prensado por seu tronco, entre as “ferragens” de seus galhos.
Que dó de seu proprietário que ali o estacionou minutos antes da tempestade de vento passar com sua fúria devastadora e, num único volteio, ter extraído, pela raiz, nossa estimada vizinha das entranhas do chão.
A Defesa Civil foi acionada e, em pouco tempo, chegou ao local! Os técnicos ficaram incrédulos! Nossa rua estava totalmente obstruída pela digníssima “senhora” e, no asfalto lavado pela chuva, a vítima não poderia imaginar que ainda seria esquartejada pela impiedosa motosserra que iria desferir-lhe o golpe final. Trabalho de vários homens que perdurou horas, decepando galhos, tronco, sua pacífica existência.
Infelizmente, ela não era a única vítima! Havia outras árvores nas mesmas condições em outros pontos da cidade! Outras equipes da Defesa Civil trabalhavam sem trégua para desobstruir calçadas, ruas, avenidas e parques… Quantas árvores haviam sido sucumbidas na Princesa do Norte? Quantas outras ainda seriam sacrificadas nas próximas tempestades?
Enquanto o estridente barulho da máquina adentrava a noite, fiquei da varanda velando a velha amiga. Sua existência foi parte da minha. Suas floradas, no verão e outono, enfeitavam a rua de amarelo ouro! Quantas vezes, de manhãzinha, recolhi cascas de ovos de passarinhos recém-nascidos dos altos ninhos edificados em sua copa!
Quantas vezes a sua sombra aliviou o calor e o cansaço dos que por ela passavam! Quantas vezes minha velha amiga foi abrigo de microplantas, microrganismos, animais…
Quando uma árvore centenária como essa é arrancada do seu habitat, um mundo invisível com ela morre! É um verdadeiro desterro para os seres que nela habitam e, de modo especial, para nós – os seres humanos – que tanto carecemos de seu trabalho silencioso para perpetuarmos a vida na Terra!
A ausência brusca e absurda dessa árvore, a nova paisagem sem ela me fizeram sentir uma tristeza profunda. Perdi um ente querido, uma velha amiga. E dói tanto quanto doeu extrair o siso, perder o meu pai aos doze anos, o meu cachorro Simba, a minha mãe, amigos de uma vida…
Entretanto, o desaparecimento repentino desse ente querido da minha existência levou-me a compreender o pensamento de Emanuele Coccia/Metamorfoses em que o filósofo propõe a ampliação da percepção da vida, de seus sistemas e do mundo: “A vida é um organismo. A Terra é uma materialidade dessa vida. Nosso corpo, assim como o de uma formiga ou de uma borboleta, é a materialidade da vida. A vida passa na gente e vai para outro lugar. Ela não fica parada em lugar algum. (…) E ela não tem fim”.
Pensar sobre esse movimento ininterrupto da vida, na sua infinitude, de certo modo, estancou a dor do meu peito. Minha velha amiga não desapareceu para sempre. Ela sempre florescerá a sua imaterialidade verde e amarela na memória do meu afeto! Essa é a poética da vida. Essa é a poética daqueles que têm suas almas entrelaçadas pela amorosa existência…